Escuridão e Clareza
Sociologicamente falando a escuridão e a
clareza, como fenómenos naturais, transportam consigo, uma enorme ambiguidade,
originando múltiplas valências, contraditórias com o Social, Político e
Cultural. Assim estamos perante uma problemática declarada e profundamente
antropológica.
Perante a escuridão e a claridade com todo o
espectro de luminosidade, formatam/condicionam a nossa vida, a comunicação, a
avaliação dos problemas que surgem, assim como nas obras de arte que criamos, sejam
pinturas, poesia, romance, cinema, teatro ou música.
Acrescentemos o modo como a escuridão e a
claridade do espaço e do tempo marcam presença nas relações de poder, seja de
natureza capitalista, racista, sexista ou religiosa, assim como nas relações de
resistência e de convivência.
A
noite e o dia
A noite e o dia, desde os primórdios,
destacam-se como formas divisórias no
âmbito da sociabilidade e das relações
com a natureza. A observação do céu para interpretar os astros optimiza-se na
escuridão. O conhecimento dos astros era crucial para saber as horas, prever as
condições meteorológicas, navegar em águas desconhecidas, decidir os trabalhos
e os ritmos agrícolas, adivinhar o futuro, etc. Também a vida dos animais se
regulava pelos astros.
Ao longo de milénios, o
tempo diurno contrastou com o tempo nocturno estruturando a vida social. A
noite como tempo de descanso, mas também, dos perigos, dos excessos e dos
prazeres ilícitos. Na Idade Média, apelidada de “a idade das trevas”, andar de
noite representava o perigo: ladrões, assassinos, bruxas, mas também as fezes e
outros lixos atirados das janelas, como causas.
Segundo os relatos da
vida doméstica medieval, era típico o casal deitar-se depois do pôr do sol,
dormia quatro horas, acordava e ficava na cama mais duas horas a conversar e a
amar. Com o aparecimento da luz
levantava-se para trabalhar.
Coincidindo com a
designação da “idade das trevas (sobretudo no século XIX) o colonialismo foi
afirmando a superioridade da Europa sobre o “continente escuro” habitado por “gente
escura”.
O capitalismo impôs uma
forte disciplina sobre os trabalhadores, traduzindo-se isso numa crescente
vigilância da noite, período em que a burguesia tinha menos controle sobre as
“classes perigosas. A escuridão dos bairros
aumentava a suspeita dos possíveis comportamentos depravados ou
revoltosos.
A luz natural e a luz artificial.
A luz artificial a partir do século XIX introduz profundas
transformações nas relações entre a noite e o dia. Ao clarear a noite muitas
tarefas confinadas ao dia passaram a serem realizáveis também à noite,
resultando isto num progresso extraordinário, mas não era politicamente inócuo,
acabando por produzir efeitos perversos. A iluminação pública surgiu assim como
uma forma de biopolítica, disciplinar os corpos por via de maior vigilância em
nome do progresso e da manutenção da ordem. A apetência pela cidade que não dorme
tornou-se irresistível, ocorrendo também alguma resistência. Os primeiros
candeeiros públicos a gás foram apedrejados por aqueles cuja escuridão da noite
era considerada uma condição essencial da sua sobrevivência ou profissão,
fossem ladrões, prostitutas, artistas, traficantes de drogas, boémios ou
revolucionários.
A crescente luminosidade
artificial leva os artistas, ainda que menos condicionados pela divisão do dia
e da noite, passarem a preferir a escuridão para cultivo da criatividade,
procurando em caves, bares, túneis, canais de esgoto, periferias urbanas ou no
campo.
A escuridão
transformou-se numa nova atracção, um divertimento público, ambiente propício
para a evocação de espíritos em sessões espiritistas ou para filmes de terror.
Prospera hoje uma economia da noite em que a escuridão é um elemento
fundamental do sublime urbano nocturno.
Quanto mais brilha a
terra, mais o firmamento se esconde. A iluminação excessiva produz uma nova
forma de cegueira. Até ao início do século XX, era possível ver à noite e a
olho nu cerca de 2.500 estrelas. Hoje, vêem-se menos de uma dúzia. Será
um problema para os astrónomos, mas tem
muitas outras ramificações, na vida dos animais humanos e não humanos, na saúde
mental, na aprendizagem, nos ciclos de vida. Numa grande cidade (do
Norte global), o céu à noite é 25 a 50 vezes mais claro que o céu nocturno
natural. As aves migratórias são algumas das vítimas da poluição da
luminosidade.
O fim do dia e da noite.
Quando excessiva, e aqui
o paradoxo, a luz artificial revela o seu lado escuro, criando uma desconexão
com a natureza, com os astros e o consequente empobrecimento da relação com o
mundo mais amplo em que nos inserimos.
Além disso, os seres
vivos têm ciclos regulados pela luz e pela escuridão. O ritmo ou ciclo
circadiano, o ciclo do período de 24 horas regulado pelas variações da luz,
temperatura, marés e ventos entre o dia e a noite. A perturbação do ciclo
circadiano produz fadiga e desorientação e, se for prolongado, pode causar
doenças graves. Não é por acaso que os torturadores de prisioneiros políticos
submetem as suas vítimas à tortura da luz.
A intimidade e a violência de género.
A escuridão é segurança
e protecção, assim como insegurança e de
perigo, pode facilitar a agressão ou a intimidade. Os fenomenologistas chamam a
atenção para o facto de o sentido da subjectividade ser sensível ao contraste
entre claridade e escuridão. Para Merleau-Ponty, a percepção dos contornos
físicos da pessoa tornam-se mais ambíguos na escuridão, facilitando a abertura
e a entrega ao outro. Imagine-se quanta
confidência ou quanto êxtase sexual exige voz baixa e escuridão ou
semi-escuridão!
Conclusão
Abre-se um campo de
reflexão para reflectirmos seriamente sobre os esteriotipados conceitos do
negativo e do positivo, fruto duma semiótica demasiado classificativa imbuída
duma suposta separação entre o bem e o mal, levando-nos a “compartimentos”
absolutamente estanques que em nada ajudam tal famigerada e tanto procurada
“verdade”. Caso para pensar que afinal ela é o tudo ou o nada. Concluímos referindo que Lúcifer
(etmimologicamente) deriva de Lux, o que leva a pensar pelo menos e no mínimo,
a dois conceitos que serão o MAL e o BEM.